terça-feira, 14 de junho de 2011

As Mulheres

Segundo as Escrituras a mulher saiu do homem, para depois o homem sair da mulher. O Livro conta que foi retirada uma costela ao primeiro macho, com o intuito de criar uma fêmea para lhe fazer companhia, uma vez que, ultimamente, ele andava muito sisudo, nervoso e já não brincava com os outros animaizinhos; pelo contrário, encostava-se a um canto isolado, quebrado, incapaz de qualquer reacção. Por outro lado, uma segunda criação permitiria corrigir certos aspectos, que só ocorrem após uma verificação exaustiva. Costuma dizer-se que a obra quando acaba devia estar a começar. Este caso não era muito diferente: O macho apresentava um queixo demasiado saliente e a fronte a modos que fugia para trás, num plano inclinado. Era um rosto com aproximação óbvia para o focinho. Por outro lado a inteligência não primava pela abundância.
Assim, enquanto macho dormia fez-se a operação, sem que ele se apercebesse. Não foi necessária anestesia nem pancada na cabeça, porque a Deus tudo é possível. Assim como o operado ter ficado completo, sem defeito, a caminhar sem inclinação. E com menos um osso!
Quando o macho acordou sentiu de imediato uma respiração ao lado. Ali estava aquela criatura, num sono profundo, sossegado. E gostou do que viu. Olhou, bastante admirado e voltou-se para o Céu num murmúrio: “Quem é?!” Pelos vistos não obteve resposta, certamente por que ainda não tinha qualquer feito que merecesse algum diálogo; nem sequer se atrevera a fazer um mísero holocausto, com um coelhito ou uma pomba! E nestas coisas tem que haver sempre uma troca, senão não será possível um reconhecimento… Mesmo assim, voltou-se para Nascente, ajoelhou e agradeceu.
O macho olhou mais uma vez para a sua companhia e notou algo de diferente: Ela tinha dois altos no meio, ali bem em frente. Os bicos eram parecidos com os seus, mas estavam no centro de dois inchaços, que ao toque eram bem macios… E gostou do que viu. Verificou de novo, virou-se dum lado, virou-se do outro e, nesta observação pormenorizada, reparou numa falha, no seu entender, enorme. Faltava-lhe aquela coisa! Melhor, pensou. No outro dia tinha batido com aquilo num tronco de árvore e doeu. Mas lá que era estranho, era! Tornou a olhar para o Alto: “como é que isto aconteceu!?” Não houve resposta, de novo. Assim sendo, o melhor seria analisar com mais atenção, uma vez que pêlo havia… E foi nesse momento que o seu espanto aumentou! Chegou-se melhor. E gostou do que viu. Espreitou, chegou-se ainda mais e, como se não nos ensinam a gente inventa, o nariz experimentou uma humidade com odor indecifrável. Não… não parecia adequado e era até desconfortável… Convenhamos que o primeiro nariz não fora concebido com aquela finura que muito mais tarde conseguiu ter, mercê dum natural aperfeiçoamento dos seres vivos. Aquele não era aquilino, mas antes bastante achatado. Mas foi nesse preciso momento que, ou por sabor ou por cheiro ou por outra qualquer circunstância de que nunca chegaremos a saber, o macho sentiu um estremecimento da cabeça aos pés, como se fora uma faísca em correria louca, e ergueu-se bem para cima em busca duma resposta cabal de todos os deuses… Então entendeu! Realmente o nariz não era apropriado!
Entretanto a fêmea acordou do seu longo sono de criação. Nesse momento dormia a seu lado aquela criatura! Roncava e “fervia papas”, circunstância menos agradável. Procedeu à sua análise e não precisou de muito tempo para compreender a sua missão. Olhou o ambiente, aspirou o ar e sentiu-se bem, muito bem, muito confiante. Levantou-se, deu uma volta curta, refrescou-se num riacho ali perto, comeu um fruto, experimentou uma certa vibração, tornou a olhar em redor. E gostou do que viu. Quando o companheiro acordou, ela já estava ali sentada. Sorriu para ele, divertiu-se com os seus gestos meio desastrados, pegou-lhe na mão e pôs-se a seu lado. Gesto simples e inteligente, revelador duma soberba criação, que viria a aperfeiçoar-se com o decorrer do tempo. Com um sorriso levou-o para o primeiro reconhecimento territorial do ser humano.
Seguem-se dias de grande felicidade. A mulher, nome entretanto dado à fêmea, denota mais harmonia, mais saber escondido, até caminha com mais elegância. Por outro lado não apresenta aqueles humores desproporcionados que se vêem nele. Muito dedicada ao seu cantinho, mantém-no sempre limpo, bem cuidado. Apanha umas flores e coloca-as num buraco da rocha. Distribui as frutas, então colhidas, uma para ele (a maior), outra para ela. Vê-o embevecido, até meio apalermado, e acha piada. “Como é tão fácil alegrá-lo!” A vida a dois promete ser bonita. Quando ele se afasta para caçar, ela colhe margaridas, faz duas braceletes e um colar, adorna-se e aguarda, para mais uma vez sentir aquele prazer de o ver completamente derretido. Está divertida!
Quando vem a noite e o companheiro dorme, sempre ruidoso, a mulher permanece mais tempo acordada, o que lhe permite observar, pensar e idealizar melhor as tarefas para o dia seguinte. E num destes momentos em que ela olha o firmamento, levanta os joelhos e abre-os ligeiramente, ficando, assim, exposta. - Muito mais tarde e, em alusão a esta postura, Saramago, num discurso frontal, sem rodeios, escreverá que “assim têm de estar abertas as pernas das mulheres para o que entra e para o que sai”. E é no momento referido que ela imagina que duas daquelas estrelas são os olhos do companheiro bem juntos dos dela, numa posição mais cómoda, mais compatível com sua origem humanóide. Seria tempo de melhorar uma situação de que somente ele desfrutava, com apetites cada vez mais frequentes e com uma rapidez imprópria; acto desinteressante, desconfortável, dorido, bruto, rudimentar. Um frete! Ademais aquela manápula na nuca é humilhante! Frente a frente haveria uma mistura de sentimentos, um arfar conjunto. As bocas viriam a unir-se muito mais tarde.
Iria convencê-lo, sem dúvida, para as atitudes que ela achava melhor. Para ele a caça era o ideal. Fazia-lhe bem descarregar toda aquela rudeza, aquela valentia de macho dominante para, depois, regressar com algum bicho ao ombro, mais sereno, mais cooperante, mais dócil. O comer a carne em conjunto também reforçava a união.
Na planície, agora chamada Aldeia, já há várias mulheres e também há homens, circunstância perfeitamente natural. Não o será da mesma forma, quando a existência de casais também abunda, porque se o primeiro filho conheceu mulher, temos aqui uma situação aberrante, que será melhor não adiantar. Forma-se, então, uma comunidade. Percorrem-se grandes espaços, exploram-se os montes, varia-se a comida, assam-se os bichos. Enquanto eles se juntam a um canto a descrever façanhas e a aumentar as babosices, as mulheres prosseguem a lida, organizam-se, tornam-se o centro da família, aquecem o espaço, planeiam as acções. Ainda não votam no candidato a chefe tribal, mas é necessária paciência. Tudo a seu tempo.
Na ausência deles as mulheres juntam-se e conversam sobre tudo. Contam peripécias, descrevem comportamentos, pedem opiniões, confidenciam incompetências na hora da verdade e, especialmente, riem, riem muito. Estão francamente divertidas! Encontram soluções e preparam-se para os seus ensinamentos, de forma discreta, sem ofender susceptibilidades, prontas a reforçarem a união e a mostrarem que, por vezes, o caminho se faz apontando o dedo na direcção certa quando a realização quotidiana é menos conseguida…
O espaço a conquistar é, por ora, este. Nada de extraordinário. Outros muito maiores e exigentes se seguirão. Mas as mulheres estão cientes do seu poder, da sua perseverança e do esperado êxito. Elas pensam, planeiam, realizam e esperam…

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