terça-feira, 7 de junho de 2011

o Amor

O amor começou com a história de Eva e Adão. Temos como fundo o Paraíso com toda a sua beleza: Muita verdura, muitas árvores, riachos, enfim, um local encantado, abençoado e partilhado por dois corpos nus, desfrutando do excelente ambiente e entregando-se a todos os prazeres da boa vida que lhes havia sido permitida. Mas o olho que tudo vê lá estava em observação constante, ajuizando as acções. E muitas vezes o Senhor terá corado de vergonha ao presenciar a volúpia daqueles dois e, quem sabe, terá até tapado os supremos e sensíveis ouvidos, perante uns ruídos até então desconhecidos. O fruto da Sua sábia criação, o Seu expoente máximo demonstrava um estranho comportamento. Seria possível que um simples fruto, por mais sagrado que fosse, proveniente da douta árvore proporcionasse esta tamanha satisfação!? Havia sido dada uma ordem simples: “ multiplicai-vos”. O Senhor não se lembrava de lhes ter ordenado que cometessem tais impropérios. Nem poderia! A Sua divina sabedoria jamais seria capaz de lhes ensinar tais coisas! Uma reflexão profunda era necessária, assim como uma tomada de posição.

Veio a serpente, a maçã, a vergonha da nudez, vieram as parras, veio o motivo oportuno para resolver tamanho problema. Foram Eva e Adão expulsos do Éden: “Se quereis entregar-vos a tamanhos desmandos, praticai-os lá fora”. Ficou assim o jardim vazio de homem e mulher, porque o Senhor não se atreveu a repetir tal criação. E para afirmar a Sua ordem, colocou na entrada um anjo armado de espada flamejante, instrumento que virá, mais tarde, a ser copiado por Darth Vader e Luke Skywalker nas suas contendas galácticas de pai e filho.

Mas o amor não acaba, não pode acabar. E surge até entre os deuses, repleto de peripécias, de azedumes, de ciúmes, de tragédias. Recordemos Cibele e Átis, Afrodite e Adónis. Também acontece em situações mais terrenas, levando povos à guerra, como a de Tróia, com Helena e Páris em protagonismo. Entre reis, com Cleópatra e Marco António. Não esqueçamos, também, os romances de cavalaria. E mais pertinho de nós, tivemos Julieta e Romeu.

Portanto, vistas as coisas, o Senhor apenas não quis a paixão dentro do Jardim. Lá era um lugar sagrado; e em lugares assim não pode haver pecado. Cá fora está um pouco por conta dos humanos: multiplicar agrada ao Senhor e, se para isso, for necessário cortejar e dar todos aqueles passos até ao êxtase, pois bem, assim seja.

Então, o amor amadureceu, cresceu em qualidade, cresceu em número. Vemo-lo por aí na rua, nos bancos de jardim, nos parques, mais escondido, mais às claras, fazendo jus ao nome, trocando salivas, misturando fluidos. Tudo com a generosa graça de Deus. Antes o rapaz olhara a rapariga e sentira uma vibração por todo o corpo. Dilataram-se todos os poros e parecera que todos os pêlos se haviam encrespado. Era aquela a mulher da sua vida. Tinha de a conquistar! E agora os dois já fazem parte do rol dos namorados, a arrulhar por todos os cantos, com mais ou menos timidez, mas nunca na frente do futuro sogro. Junto dela o tempo passa demasiado depressa, numa felicidade indescritível; sem ela o relógio não avança, num tormento atroz. Receia perdê-la. Ocorrem-lhe toda a espécie de pensamentos negros. Vê o mundo como um perigo constante a ameaçar a existência da sua amada. “Como estará ela? Terá comido bem? Será que traz aquele vestido azul? Preferia que trouxesse calças. Estará a pensar em mim?” Oh, como seria bom fundir-se com ela em corpo e espírito: comer o que ela come, caminhar com os seus passos, olhar o que ela vê, sentir o que ela sente, dormir o seu sono e apegar-lhe o seu amor para que ela não pudesse, jamais, fugir. É um sentimento ardente, amargo, consolado, dorido, inquieto, feliz. E esses pensamentos rebuscados levam-no sempre a um recolhimento. E, por vezes, lê. E lê Camões:

Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.

                       
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo amor?

Mas a seguir é outro dia. É um daqueles dias! E os dois apaixonados, mesmo que ainda não amantes, vão conhecer-se, aproximar gostos, virar o avesso, tolerar-se, amar-se. Será um amor diferente do dos pais ou avós, de quem num futuro próximo se afastarão. Será um amor profundo, apaixonado, completo. Ela será a sua melhor amiga, que o ouvirá e ajudará em todos os momentos, melhores ou piores; será como a sua mãe que dele tratará como se dela fosse; será a sua amante, que com ele partilhará a felicidade, o prazer. E mais tarde os dois recordarão todos os momentos que em si próprios encontraram alimento, comendo-se e roendo-se desvairadamente, como se o mundo fosse acabar, ou temessem que a tal ordem de expulsão não se confinasse ao Paraíso e chegasse ali ao quarto.

E a seta de Cupido prossegue incessante e atinge onde menos se espera. E mais um rapazito olha para trás e mira as formas roliças da rapariguita. Ela apercebe-se, olha também para trás, sorri satisfeita, toda vaidosa, orgulhosa do que tem, ciente do que vale, da atracção que a rodeia, da realidade da sua formosura, do seu andar rodopiante, do seu menear de cabeça, do seu peito erecto, da sua resplandecência.

E o outro rapaz, ao lado do rapazito, com uma observação mais cuidada, mais material, mais adulta, mais desejosa, pensará de outra forma, com mais ou menos saliva: há realmente um Deus algures…

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